“A revelação de que um médico dermatologista recebeu mais de 400 mil euros por dez dias de trabalho adicional no Hospital de Santa Maria é, antes de mais, um abalo grave à confiança que os portugueses depositam nas instituições públicas. Independentemente da legalidade do processo — matéria que caberá às autoridades competentes averiguar — o que está em causa é uma ferida profunda na credibilidade do Serviço Nacional de Saúde e, mais amplamente, na ideia de justiça e responsabilidade na gestão do erário público.

Vivemos num país onde milhares de cidadãos esperam meses por uma consulta, onde há hospitais a funcionar em regime de contingência por falta de profissionais, e onde se acumulam denúncias de exaustão entre médicos e enfermeiros. Perante este cenário, como pode o mesmo sistema permitir que um único profissional receba, em média, 40 mil euros por dia através de um regime dito “adicional”? A justificação de que se trata de cirurgias fora do horário normal, no âmbito do SIGIC, só agrava a perplexidade: terá o sistema sido desenhado para resolver listas de espera ou para permitir acumulações desta natureza?

Não se trata de inveja, nem de uma crítica leviana ao mérito de quem trabalha mais. Trata-se, sim, de questionar os critérios, os controlos e a moralidade de um modelo que, sendo financiado com o esforço de todos, permite remunerações que ultrapassam os limites da razoabilidade — sobretudo quando comparadas com o salário médio de um profissional de saúde no SNS. O que foi revelado não representa apenas um caso isolado; é o espelho de um sistema onde a falta de fiscalização e a opacidade de processos criam espaço para abusos legitimados por dentro.

Pior do que o montante em causa é o silêncio dos responsáveis institucionais. A ministra da Saúde, pressionada pela indignação pública, limitou-se a reconhecer o dano causado à imagem do SNS. Mas não basta constatar o óbvio. É preciso assumir responsabilidades, rever procedimentos e introduzir mecanismos eficazes de controlo. De igual modo, espera-se da Ordem dos Médicos e da administração do hospital uma resposta clara e célere — não apenas para apurar factos, mas para restaurar o sentido ético da profissão e do serviço público.

Os portugueses não compreendem, nem aceitam, que se invoque a legalidade para justificar o que é, na sua essência, moralmente inaceitável. Numa altura em que se exige contenção, rigor e responsabilidade na administração pública, episódios como este só contribuem para alimentar o cinismo, a descrença e o afastamento dos cidadãos em relação ao Estado.

Não é só uma questão de números. É, sobretudo, uma questão de valores.

Paulo Freitas do Amaral

Professor, historiador e autor”

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